segunda-feira, 23 de abril de 2012

Patinho feio ou cisne seguro de si? Surdez, comunicação e estima de fi mesmo

Comentário do texto:
Patinho feio ou cisne seguro de si?
Surdez, comunicação e estima de si mesmo
                                                                       Rosa Garcia
 

Quando olhamos para alguém que não conhecemos, mas que utiliza o gesto como forma de comunicação, não sabemos nada dessa pessoa. Ignoramos se é surda (ou ouvinte), se sempre o foi, se alguma vez ouviu, se sempre “falou com as mãos”, se sabe oralizar, como comunica com os outros que desconhecem a língua gestual, como olha para o mundo que a rodeia e/ou como o interpreta, entre outros aspectos.
Nascer surdo profundo e crescer numa família de ouvintes, ou crescer numa família onde a principal forma de comunicação é a língua gestual, poderá vir a revelar-se determinante na vida de um surdo. Assim como fará toda a diferença para um surdo adulto, ter nascido surdo profundo ou ter perdido a audição ao longo da vida e após a aquisição de uma linguagem.
São estes “pequenos” aspectos, muitas das vezes ignorados, que podem condicionar toda uma vida, pois a visão que um surdo tem de si mesmo e a avaliação que faz das suas capacidades, depende em grande medida da capacidade que tem para comunicar e se relacionar com os outros.
Um surdo não é alguém a quem falta algo para se desenvolver normalmente, não é alguém com problemas psicológicos resultantes da surdez, não é alguém impedido de comunicar. É apenas alguém que necessita, desde pequeno, quando ainda não tem capacidade de decidir por si próprio, que lhe sejam facultados os instrumentos que lhe permitam adquirir a forma de comunicação mais adequada à sua condição. Com essa ferramenta, o surdo é igual aos ouvintes, diferindo apenas no canal de comunicação, mas tendo a escrita como elemento de comunicação comum.
É através da comunicação que, quer os surdos quer os ouvintes, se avaliam os si mesmos e avaliam os outros, pelo que é determinante que relações de amizade, familiares ou outras se estabeleçam.
Qualquer criança quando nasce tem um elo de ligação muito próximo com a mãe e ambas comunicam mesmo sem que tenha existido uma aquisição prévia da fala. Assim, também a criança surda, comunica desde que nasce com a sua mãe. Fá-lo de forma visual ou através do tacto, exponenciando estes dois sentidos, em substituição da audição, enquanto que uma criança ouvinte reconhecerá a mãe também pelo som.
Para uma melhor compreensão daquilo que poderá ser a vida de um surdo com ou sem acesso à língua gestual, a autora faz uma analogia com a história do Patinho Feio.
Tal como a mãe do Patinho Feio, também a mãe da criança surda ama o seu filho, conseguindo comunicar com ele desde que nasce. Essa relação forte, intensa e recíproca que o bebé estabelece com a mãe impede, em alguns casos, que esta se aperceba precocemente da “diferença” do seu bebé, ou, apercebendo-se, consegue arranjar artifícios que fomentam a comunicação. Mas, apesar da relação mãe-bebé não sofrer qualquer beliscão devido à surdez, mais tarde tornar-se-á necessário alargar essa relação/comunicação à restante família, aos amigos, à sociedade em geral. É no momento em que aumenta o número de intervenientes na relação com a criança surda que surgem algumas questões que ganham maior relevo se a criança iniciar o seu percurso escolar sem nunca ter tido contacto com a língua gestual, pois foram vários os anos que ficou impedido de conviver, por se encontrar no meio dos que ouvem e falam.
A entrada na escola é para o surdo, o momento em que o Patinho Feio abandona a sua mãe e procura uma nova vida longe da sua asa e encontra “outros” iguais a si. Ao encontrar-se com outras crianças surdas e ao aprender língua gestual, o surdo pode sair do silêncio em que se manteve até então, ganhar esperança e acima de tudo, ganhar confiança em si e começar a relacionar-se com os outros de forma mais aberta, avaliando-se e avaliando-os. Ao comunicar com os outros, percebe que é capaz, que há quem o compreenda (para além da mãe) e que tem a capacidade de mudar os outros. Isso fá-lo-á gostar mais de si e acreditar que “pode tudo”.
Ao contrário de uma criança ouvinte, para o surdo profundo o som não funciona como método de comunicação, de avaliação, de expressão e avaliação de si mesmo. Numa fase inicial, o gesto é utilizado exclusivamente entre filho e mãe, contudo é substituído de forma natural pela aprendizagem de uma língua gestual, que será utilizada como meio de comunicação, caso o meio social lhe permita.
Não desrespeitando as competências do surdo, no processo de aquisição da língua falada deve valorizar a escrita, pois tal como a Língua Gestual, são ambas visual – motora. Contudo se um surdo profundo de nascença só tiver acesso à língua falada, este entrará em processo de exclusão. Tal como os ouvintes tem como referência a oralidade, para o surdo a sua referência é o gesto, o visível. A escrita, como vertente visual da língua falada, pode também ter um sentido para o surdo, e é a partir da escrita que os surdos e ouvintes podem considerar-se membros da mesma comunidade linguística. A escrita integra surdos e ouvintes num mesmo grupo, onde lhes é proporcionado a partilha de “sentires e sentidos” próprios de cada membro das distintas comunidades.
Assim sendo, a escrita é uma forma de inclusão do surdo profundo de nascença na comunidade ouvinte; onde a imagem visual é cada vez mais privilegiada. Então porque razão não se exige que um surdo profundo fale? O som não é algo natural num surdo profundo, é um sentido que este desconhece, assim seria uma injustiça para o mesmo defender que deveria utilizar o som como meio privilegiado de comunicação. Se não pararmos para pensar um pouco nesta questão, corremos o risco de entrarmos num caminho de exclusão violenta ao obrigarmos um surdo profundo de nascença a usar uma língua oral como meio de comunicação.
À nossa volta existe uma riqueza visual-motor que aos olhos de um ouvinte “passa ao lado”, contudo para um surdo essa riqueza é evidente. Um ouvinte ao deparar-se com uma língua visual-motor, cujo significado lhe é desconhecido, é evidente o desconforto de quem fala e ouve. Os pais ouvintes com filhos surdos sofrem com o seu desconhecimento sobre a surdez, sofrem com a falta de um instrumento de comunicação entre pais e filhos. Na oralidade cega não existe a partilha de sentido e desta forma o surdo corre o risco de ficar excluído do convívio com os outros e de nunca conseguir organizar um sentido de si mesmo, ou de não poder avaliar como alguém em contacto com os outros. O convívio é algo indispensável ao seu desenvolvimento.
O que precisa um surdo profundo de nascença para o seu desenvolvimento? No momento em questão um surdo ainda não tem idade de escolher, torna-se necessário que alguém escolha o caminho certo para ele. Contudo quem escolhe este caminho tem que fazer a escolha certa onde terá que ser prudente para lhe proporcionar o acesso a uma língua, assim como respeitar a particularidade da situação do surdo tendo em vista a realização plena do sentido e do potencial da vida. Embora seja uma minoria, as crianças surdas filhas de pais surdos que têm acesso à Língua Gestual no seio familiar, possuem um instrumento valioso que lhes permite alcançar o sentido e a expressão de si mesmo. Um surdo profundo de nascença, mesmo com o auxílio de meios artificiais (implantes coclear) nunca iria conseguir configurar o sentido do som que sempre lhe foi desconhecido, não lhe é natural. Quando não existe o acesso à Língua Gestual e à escrita, o surdo fica privado de se estruturar.

Actualmente, pretende-se que a escola seja um meio de inclusão, onde existem técnicos competentes e com características específicas, contudo é visível o sofrimento de um surdo profundo de nascença quando lhe é negado o uso da sua língua natural, a língua gestual. O convívio com os outros, sem o uso da língua gestual, não é suficiente para o seu desenvolvimento, pois é no seio da sua comunidade que se desenvolve a língua e a sua identidade. A equipa técnica existente na escola (psicólogos, terapeutas…) são bem-intencionados contudo esquecem o surdo na sua globalidade, uma vez que o surdo é visto como alguém a reabilitar e não como alguém com potencialidades. Não basta querer tornar o surdo um paciente modelo, pois este não é o meio de realização da pessoa surda. É necessário alertar para a visão parcelar que se tem do surdo, não se pode perder a noção que um surdo é uma pessoa inteira, una, com sentimentos, aspirações, desejos, necessidades e capacidades próprias.

A importância das experiencias significativas vivenciadas pelo surdo são importantes para que este olhe para si mesmo como alguém com capacidades. É importante que o técnico veja o surdo como um semelhante a si mesmo, olhar para este como alguém com capacidades de agir por vontade própria, capaz de ser autónomo, desta forma não devemos julgar o surdo pelas suas desigualdades.
O sujeito procura o sentido de si mesmo nas suas escolhas e apenas nós mesmos o podemos fazer. Sozinho o surdo fica sem condições de realizar trocas e partilhas humanas. Um amigo é aquele que ama o amigo por aquilo que ele é sem lhe exigir a perfeição. Sem a reciprocidade da amizade perde-se o equilíbrio das trocas humanas, o justo reconhecimento de si, do que há de bom em nós. Sem identidade entra-se num caminho de solidão, de deslocação, de fechamento do qual pode ser difícil sair. Para existir um diálogo de partilha são necessárias duas pessoas. Mesmo sem ânimo, o surdo prossegue a interpretação de si mesmo de forma a melhorar a sua vida. São através dos jogos comunicativos e do “faz de conta” que uma criança cresce e se desenvolve. O diálogo é o elemento principal para que este se encontre consigo mesmo.
Surdo ou ouvinte, é através dos outros que nos avaliamos e que nos estimamos a nós mesmos.

BISPO, M. et al (Coord.), O Gesto e a Palavra I – Antologia de textos sobre a surdez, Projecto AFAS, Lisboa: Editorial Caminho, S.A., 2006, pág. 313 – 337

Discentes: Andreia Alves e Sara Fulgêncio

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